quarta-feira, 30 de maio de 2007

NOSFERATU

Por Marcos T. R. Almeida

"Nosferatu é uma palavra moderna derivada da palavra em eslavo antigo Nosufur-atu, extraída do grego Nosophoros, Portador de Pragas." - J. Gordon Melton

Quando o escritor irlandês Bram Stoker publicou no ano de 1897 seu livro Drácula, talvez não pudesse imaginar o tamanho em proporções que sua obra iria adquirir no futuro com a invenção do cinema. Foram feitas mais de cem versões sobre o vampiro mais cruel de que se tem registro, com a imagem medonha de um ser malígno que alimenta-se de sangue humano, levanta-se de seu insalubre sepulcro ao cair as "trevas no céu pesadamente" (como dizia Anthero de Quental), e depois retorna ao mesmo local ao ouvir o cantar do galo, como indício de que o dia vai nascer.



Dentre estes horripilantes filmes sobre vampiros, "Nosferatu" parece ser o primeiro (1922), destacando-se dos outros por arrepiantes cenas rodadas em branco e preto, dando à obra um caráter de profunda fantasmagoria e pesadelo, onde o vampiro Conde Orlok surge da escuridão em um visual agressivo e bizarro como o protótipo ser anti-social, com seu semblante sinistro que lembra uma medonha figura que traz a própria morte encarnada em si mesmo. Pestilento e doentio, Nosferatu tem os dentes em forma de duas pontas juntas como a de um rato roedor, usa um casaco preto como um gótico moderno de vida noturna, além de unhas pontiagudas e cabeça sem um só fio de cabelo. Magro e alto, esta figura horrível traz o horror encarnado assustando até o mais cético mortal.
O filme invoca em suas imagens trêmulas, as exóticas paisagens da Alemanha que muito aproxima-se em beleza exuberante das regiões desconhecidas da Romênia, a antiga Transilvânia onde viveu na Idade Média o Drácula histórico Vlad Tepes Dracul.
Neste pitoresco cenário, o diretor F. W. Murnau encontrou todos os ingredientes básicos que invocam o vampirismo, montanhas, florestas densas, riachos, pontes, capelas, castelos em ruínas, aldeões ciganos, lobos, carruagens e, é claro, o talento de Max Schreck, que faz o papel do vampiro Nosferatu. E desta forma, a primeira versão para o cinema da obra de Bram Stoker revive todas aquelas imagens do horror de Drácula contidas nas páginas do livro.
Quem for assistir Nosferatu na esperança de ver cenas fortes de violência e sangue num exagero aloprado e até ridículo, caracterizado pela idiotice da ideologia americana, vai com certeza ficar decepcionado, afinal Nosferatu é uma obra do expressionismo alemão e assim o caráter do horror dá-se num clima de sonhos maus e pesadelos,
culminando numa peste malígna que arrasta todos para uma grande mortandade, e tudo envolto numa atmosfera gótica e nevoenta, onde é o inconsciente quem vai ser despertado para uma realidade mais subjetiva que objetiva.
O enredo do filme é simples, baseado no livro "Drácula", com algumas modificações de nomes e locais apenas, e isso devido talvez por não terem pagos os direitos autorais à viúva de Bram Stoker, que teria entrado com um recurso na justiça para a destruição das cópias do filme caso não fossem pagos os direitos autorais.
Para a nossa sorte, algumas cópias do filme sobreviveram a esta polêmica e hoje podemos mergulhar dentro destas imagens e captar o verdadeiro horror que "Nosferatu" causa no espectador.
Nosferatu é o "não morto", o morto vivo, um vampiro que nada tem de galã e sedutor pois é corcunda e de aspecto decadente.
Ele penetra na civilização do Homem como uma maldição, vindo de longe, navegando em uma escuna, um velho barco onde os tripulantes são todos mortos. Nosferatu bebe o sangue deles e transmite a peste negra a todos. A maioria dos marinheiros morrem de febre alta em delírio!
Milhares de ratos acompanham o vampiro, fazendo uma alusão também à maior mancha de horror ocorrida na Idade Média na Europa: a peste negra...
No decorrer do filme, o amor, aleijão da humanidade, entra em cena e o vampiro é atingido não com uma estaca no coração mas com a imagem ideal de uma mulher jovem e bela, aquela que ele havia visto o retrato no camafeu do corretor de imóveis que ele fez prisioneiro em seu castelo.
Esta imagem ideal, fruto de uma visão de poeta, é para o vampiro um martírio que atormenta-o, e ele deixa-se prender em seus braços macios de seda... A bela mulher convence-o a ficar com ela desfrutando os "beijos de fogo" da volúpia e do sangue. Assim, o dia vai clareando, despontam os primeiros raios do sol, a aurora segue a aurora, canta o galo mensageiro de Apollo e Nosferatu embriagado com o sabor do sangue doce da bela jovem, impregnado de uma luxúria sexual, ele esquece que tem que voltar para o sepulcro...
Então, logo ele é destruído pela luz do sol convertendo-se em um monte de poeira. Enganado e seduzido por uma "mulher ideal", encontrou seu aniquilamento! Assim a peste também acaba e os habitantes libertam-se do mal! Vale a pena ver "Nosferatu" e rever o clássico expressionista do cinema de horror, e desta forma mergulhar acordado em um dos mais medonhos pesadelos da criação humana. Confiram!

N.E.: Esse artigo foi publicado originalmente no fanzine "Juvenatrix" # 49 (Fevereiro de 2001).

O INÍCIO DA MITOLOGIA VAMPÍRICA NO CINEMA

E.R.Corrêa

A década de vinte na Alemanha foi marcante pelo surgimento do movimento artístico cinematográfico denominado expressionismo. Este movimento nos presenteou com verdadeiras relíquias cinematográficas, que expressavam, além de outros fatores, a depressão e o pessimismo, visto que a Alemanha estava política e economicamente arrasada devido a sua derrota na Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918).
E é neste ambiente que surge Nosferatu - Eine Symphonie des Grauens, (Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror, 1922), o maior clássico de horror de todos os tempos; uma verdadeira sinfonia de pesadelos ao luar.
A Alemanha é realmente uma nação surpreendente, pois foi trabalho deles introduzir o vampirismo como fonte de inspiração ao cinema. Já tinha acontecido algumas tentativas de usar o vampirismo como fonte de inspiração, porém o primeiro filme importante foi este, que sem dúvida nenhuma é a obra prima de Murnau. Friederich Wilhelm Murnau foi o responsável por esta gigantesca criação, que, como todos devem saber, foi inspirada na novela "Drácula" do escritor irlandês Bram Stoker, escrita em 1897. Porém, algumas alterações foram feitas para contornar problemas de direitos autorais. O nome do conde passa a ser Orlok e a ação é deslocada no espaço e no tempo: de Londres (Inglaterra) de 1897 para Bremen (Alemanha) em 1838.
Por não pagar os direitos autorais da história, Murnau perdeu a causa para a esposa de Stoker, e dessa forma foi proibida a divulgação do filme. Esse processo resultou na apreensão e destruição da maioria das cópias. Mas como um vampiro não pode morrer, Nosferatu torna-se um caso clássico de pirataria, servindo para tornar a obra ainda mais rara e importante para os fãs do vampirismo.



Já no início do filme, Huttler (correspondente a Jonathan da novela de Stoker), um corretor de imóveis, vai ao castelo de Nosferatu e este faz um longo monólogo a respeito da angustiante impossibilidade da morte, antes de mordê-lo. O filme traz alguns traços característicos da obra de Murnau como, a eterna luta do homem com as forças do mal, o pavoroso medo da humanidade com a solidão, o papel da mulher como vítima expiatória, etc. Embora pertença a tradição de terror do cinema expressionista alemão, a obra procura desveincular-se do condicionamento pictório e teatral da escola, na medida em que incorpora cenários naturais.
Ao contrário da maior parte dos filmes expressionistas alemães da época, como por exemplo, O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Weine, em Nosferatu as paisagens foram filmadas ao ar livre, desprezando os ambientes artificiais. A justaposição de certos elementos (a carroça do vampiro, por exemplo) com grandes espaços naturais, sugere um mistério mais genuíno do que o pintado pelos grandes cenários dos expressionistas. Realizando o filme com o mínimo de recursos financeiros, Murnau conseguiu extrair do ambiente natural a noção do sobrenatural.



O filme se tornou um modelo para a posterior utilização de técnicas para a criação de ambientes insólitos. No filme desfilam pássaros sinistros, casas sombrias, grandes espaços vazios, atmosfera pesada, árvores fantasmagóricas que formam labirintos macabros (a aparência fantasmagórica das árvores foi conseguida graças a inteligência de Murnau, que mandou colar negativos no tronco das mesmas.
A maior parte do filme foi rodado em externas na região dos altos Tatra, na antiga Tchecoslováquia e no mar Báltico, para obter, desde as primeiras imagens, o clima denso descrito pelo roteirista Bela Bálaz como um arrepiante sopro do Juízo Final".
E graças às técnicas perfeitas do cameraman Fritz Arno Wagner, Murnau conseguiu as posições e enquadramentos que tinha como objetivo, com o uso de alguns truques básicos como a carruagem que atravessa a floresta dos Cárpatos, num cenário envolto em névoa (que seria muito utilizado posteriormente como uma característica do vampirismo), com tomadas de cavalos assustados, lobos e aldeões inquietos como num pesadelo...



Filmagens quadro-a-quadro também são utilizadas no filme, como aquela cena em que a carruagem do vampiro atravessa uma estreita e vazia estrada cercada por ciprestes negros. No plano estético, podemos observar o uso do jogo de luz e sombras dos cenários, e a força das expressões faciais davam o tom carregado e depressivo, imortalizando cenas perfeitamente góticas. Como a maior parte dos filmes expressionistas, os olhos dos atores eram vivamente pintados, numa forma que nos causa arrepios.
Este filme se destaca dos outros, pois apresenta um vampiro angustiado com a própria existência (bem de acordo com a sociedade alemã da época). Enquanto para Drácula a eternidade era um objetivo a ser alcançado, para Nosferatu a impossibilidade da morte era como um fardo a ser carregado.
O conde Orlok (Nosferatu), interpretado pelo magnífico ator Max Schereck, se tornou o vampiro mais poderoso da história do cinema, pois o ator ao interpretar o vampiro idealizado por Stoker, formou uma das mais poderosas caracterizações do personagem.
Max Schereck (o ator mais requisitado na época) caiu como uma luva no papel, pis não tinha nada de sedutor, era um zumbi esquelético, corcunda e careca, com orelhas pontiagudas, dentes incisivos (e não caninos), cara de rato, dedos longos e ossudos e um infernal apetite por aranhas e moscas. Um monstro absolutamente repulsivo e angustiado, condenado a viver do sangue alheio, sem nunca conhecer a morte nem o amor. Isto sem falar do branco marmóreo de sua pele contrastando com sua capa preta e comprida, tornando-o um fantasma completamente mórbido.
Este visual um tanto carregado (?) são fatores que nos fazem parar e pensar a respeito do angustiante fantasma da solidão. E é justamente a solidão o ponto referencial do filme, é nesta solidão que se baseia Drácula, e é ainda mais forte em Nosferatu. Com movimentos duros e expressivos, Nosferatu mais parece uma interpretação teatral, numa forma de atuar que colocaria os Dráculas posteriores no bolso. Algumas lendas rodeiam o filme (como não poderia deixar de ser) como a hipótese de, em poucas cenas, não ser Max Schereck quem interpreta o conde Orlok, mas sim um grande amigo de Murnau, o roteirista Hans Ramo. Um motivo a mais para se prestar melhor atenção às cenas.
A maldição do vampirismo é retratada de forma surpreendente por Murnau, mostrando o lado sombrio da vida, o lado que todos procuram evitar, isto é mostrado pelo próprio conde Orlok; toda angústia vivida pelo vampiro é completamente explorada ao longo do filme como uma redenção do próprio homem.
O filme apresenta cenas altamente depressivas, como o castelo vazio, procissões, pessoas enlouquecidas pelo surto de peste que Nosferatu havia trazido consigo. Ellen (correspondente a Mina, da novela de Stoker) pressente a chegada do navio de Nosferatu, enquanto observa o mar em um cemitério (!). Aliás, a cena mais antológica do filme, é quando chega a Bremen a bordo de seu navio macabro, trazendo consigo centenas de ratos e, como não poderia deixar de ser, a tripulação completamente morta.
Ele leva seu próprio caixão até sua nova residência, onde, como um garoto tímido, apenas fica rodeando a casa de Ellen, até conseguir a oportunidade certa para atacar. Outra cena antológica apresenta, no meio de uma praça, uma enorme mesa, onde homens, mulheres e ratos disputam a mesma comida: é, certamente, uma alusão clara à última ceia de Cristo. Nosferatu, destrói, em apenas uma cena, dois grandes inimigos de Drácula: a ciência e a igreja.
Porém o conde Drácula domina as mulheres, Nosferatu é dominado por elas. Tanto é, que, sua destruição é causada pelo amor de uma mulher que havia causado sua ressurreição ao amor. Ela se entrega a ele, mas não para seduzi-lo, e sim para destruí-lo, pois seria a única forma.
Ele, completamente envolvido por ela, suga tranquilamente seu sangue (simbolicamente, uma relação sexual) e não percebe a chegada do sol, mas um galo o avisa. É tarde, Nosferatu é completamente desintegrado pelos raios mortíferos de seu principal inimigo em frente a janela, numa das cenas mais emocionantes do cinema (somente os verdadeiros fãs entendem!).
Entre no filme, se envolva, extraía toda a essência filosófica sem deixar nada tirar sua emoção em frente do vampiro-mor, do mestre, daquele que, verdadeiramente, entende o sentido da vida... (ou da morte?).

N.E.: Em 1979 foi filmada uma outra versão chamada "Nosferatu, The Vampyre" (Alemanha / França), com direção, produção e roteiro de Werner Herzog, e estrelado por Klaus Kinski como o vampiro, e Isabelle Adjani como a sua vítima. Durante a década de 20 foram filmados alguns filmes mudos que, ao lado de "Nosferatu", entraram para a história do cinema fantástico. "O Gabinete do Dr. Caligari", "Fausto", "O Corcunda de Notre Dame", "O Fantasma da Ópera" e "Metrópolis" são obras primas que merecem ser revistas sempre.

Nota: Esse artigo foi publicado originalmente no fanzine "Juvenatrix" # 23 (1998)

NOSFERATU
(Nosferatu - eine symphonie des grauens , Alemanha, 1922, mudo, preto e Branco, 72 minutos).
Direção: F. W. Murnau
Roteiro: Henrik Galeen, baseado no romance "Dracula", de Bram Stoker (não-creditado)
Produção: Enrico Dieckmann; Albin Grau
Música: Hans Erdmann
Fotografia: Fritz Arno Wagner e Gunther Krampf
Direção de Arte: Albin Grau
Figurino: Albin Grau
Elenco: : Max Schreck (Conde Orlok), Alexander Granach, Greta Schroder-Matray, Gustav von Waggenheim, G. H. Schnell, Ruth Landshoff. Lançado em vídeo no Brasil pela Continental.