Illustration 34 of Divine Comedy:Inferno by Paul Gustave Doré (1832-1883)
Source: http://dore.artpassions.net/
Illustration 34 of Divine Comedy:Inferno by Paul Gustave Doré (1832-1883)
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Existem questionamentos amorosos entre a física e a metafísica? O que é amar? O que é sentir dor?
Todo existencialista divaga sobre a realidade da vida e a transmutação da realidade humana. Todos os sentimentos e sentidos são pífios ardores de uma vida frustrada onde não conseguimos controlá-los; não conseguimos viver.
A realidade humana é tão subjetiva e vazia que precisamos criar fatos e emoções constantemente para não morrermos. A guerra das falácias é mais real que a própria “vida”, pois, como não nos conhecemos perfeitamente em nossa matriz, precisamos de um sonho perfeito para continuar.
Vivos?
Ando me perguntando sobre o que é real – sobre signos e silogismos para tentar acreditar que realmente existo.
O mundo não é mais mundo, não como em sua égide; hoje “vivemos” como máquinas – vazias e sem sentimentos. Não estamos mais preparados para sentir, para viver. A sociedade vive um torpor maciço e gosta disso – é mais fácil viver assim – é menos doloroso – é menos vil. Você deve estar se questionando sobre esse argumento, mas vos digo: - Hoje tudo é nivelado por baixo, até a inércia e inanição foi banalizada pela sociedade. Nada mais tem sentido! Nada mais faz sentido!
Barqueiro Solitário
Um conto dedicado à memória de Edgar Allan Poe
Percebi que estava em cima de uma rocha, levemente arredondada, que, segundo meus cálculos, media um metro quadrado aproximadamente, de forma que eu deveria me mexer com todo o cuidado e precisão, pois não sabia se estava cercado por um rio ou à beira de um precipício. A névoa (de uma forma que eu nunca tinha visto antes) me impedia de observar o que quer que fosse e tudo ao meu redor era silêncio. O frio era quase que insuportável e aquele cheiro podre estava me causando tortuosas vertigens.
Pude permanecer imóvel por uns quinze minutos, pois minhas pernas já não aguentavam aquela posição incômoda e cansativa. Por fim - numa decisão quase que imediata - resolvi esticar minha perna esquerda para baixo, a fim de verificar se poderia encontrar o solo ou algo que pudesse me orientar de como e onde estava. Senti como se a mergulhasse em algo líquido. Era, de fato, um líquido, embora pegajoso e gelado, mais parecia água de um pântano. Mediante aquele toque inesperado, levantei a perna tão bruscamente, tão rapidamente que quase perdi o equilíbrio. Meu coração gelou e senti como se fosse meu último momento na Terra (se é que eu estava na Terra). Mas com todo o esforço de meu reflexo consegui voltar à posição segura. Procedi, a partir deste instante, com extrema cautela, pois a rocha, embora aparentando solidez, era muito traiçoeira e escorregadia, talvez devido a uma pequena, mas extremamente significativa, cobertura de limo. Minha sorte é que o reflexo humano está adaptado de forma surpreendente à segurança e ao instinto de sobrevivência, não havendo, desta forma, qualquer erro, desde que tivermos por perto algo no qual possamos nos apoiar. Bendito seja este reflexo!
Voltei a me apoiar na rocha naquela antiga posição. Até agora não tinha entendido como fui parar naquela situação horrenda, minha razão era, de alguma forma, impedida de raciocinar. O vento com seu cheiro pútrido me banhava a face despejando seu hálito de morte e angústia. A água - permita-me chamar de água aquele líquido maldito com cor de sangue e cheiro de podridão - estava começando a bater levemente sobre a minha rocha, como se algo a estivesse deslocando. Com isso houve em meu semblante uma expressão de esperança, pois parecia que alguém estava vindo em meu socorro.
- "Bendito seja! Sim, alguém está vindo em meu auxílio". Esta foi minha expressão de felicidade naquele momento. Podia ouvir o avançar dos remos sobre a água e a cada instante ficava mais nítido. Porém, não podia enxergá-lo, como já disse, aquela bruma cinzenta era de uma densidade fora de qualquer tentativa de explicação.
Já estava mortalmente exausto de permanecer naquela posição e num estímulo do desespero comecei a gritar freneticamente com todas as forças de meu pulmão, numa forma tão desesperada e ameaçadora que até o próprio Satã me socorreria. O barulho dos remos se insinuavam cada vez mais perto; que bela melodia era aquele barulho tão insignificante! Nada na vida havia me causado tanta felicidade quanto aquele ruído de madeira empurrando a água. Nunca me imaginara naquela situação.
Minha garganta estava seca, não tinha mais fôlego para continuar com meus gritos. Estava exausto, mortalmente exausto, tudo que podia fazer era esperar. Por fim, a ponta do barco tocou na rocha em que eu estava. Era um comprido barco de madeira, uma madeira negra e de aspecto podre, parecia não aguentar um quilo, mas pude notar futuramente que sua estrutura era incomparável. Havia na embarcação apenas um homem, o qual não pude distinguir a face, devido ao nevoeiro, mas dava para observar seu vulto, como se fosse uma silhueta do século XVIII.
Antes de qualquer outro movimento, o sinistro vulto me indicou, com o braço direito, algo que não pude entender. Demorei para decifrar o que ele queria mostrar-me; ele não fazia uso da fala! Por fim, depois de passados alguns minutos, pude entender: ele me apontava uma moeda que, durante todo esse tempo, estava debaixo de minhas pernas, e só agora é que pude descobrir. Como que por um instinto, peguei a tal moeda e joguei em sua direção. Agora, por fim, ele apontava-me o canto do barco no qual eu deveria me acomodar. Isto eu fiz com toda a felicidade do mundo, embora achando tudo muito estranho.
A imagem daquele barqueiro era embaçada e turva, não pude, em momento algum, observar-lhe a face, somente um vulto esguio e cadavericamente sinistro. Depois de alguns segundos, "meu guia" começou a remar, imaginei que estava a salvo, mas sabia que era cedo para fúteis esperanças. Em momento algum consegui compreender como havia me enroscado naquela frustrante situação. Tudo era sem sentido e demasiado irreal para que eu pudesse achar alguma explicação, tão pouco para achar a razão de tudo aquilo. Em vista das circunstâncias, tudo o que eu queria era poder decifrar todo aquele enigma inexplicável.
Talvez este seja outro reflexo ou sentido da natureza humana: primeiro salvar a pele, por mais absurda ou inexplicável que a situação possa parecer; e depois ordenar uma via de raciocínio lógico e profundo para compreender tudo o quanto lhe havia realmente acontecido. Este é um fato que acontece com todos os seres humanos em vista do perigo, quer ele perceba ou não.
E era isto o que havia acontecido comigo, só depois de passado o momento de medo e incerteza é que pude refletir um pouco. Porém era inútil esta reflexão, era necessário deixar os fatos acontecerem. O barqueiro remava com uma lentidão quase que insuportável (não fosse aquela situação), o barco parecia não sair do lugar. De todo aquele ambiente subia um cheiro de cadáver. Não sei o que realmente aconteceu, mas nos primeiros instantes não tinha coragem e nem forças para fazer qualquer tipo de pergunta. Talvez tenha sido pelo fato de não acreditar em tudo aquilo ou imaginar tudo como um sonho ou delírio, como acontece nos sonhos, onde tudo corre naturalmente sem interrupção e/ou explicação.
Ao pé do barqueiro, mais ao lado, havia uma enorme pilha de moedas de ouro; deduzi isto pelo fato de as moedas reluzirem douradas ao reflexo da névoa. Não entendi (como tudo, aliás...) porque haviam tantas moedas no assoalho do barco, assim como aquela que eu tinha jogado aos pés do barqueiro para que ele me levasse daquele lugar. Aquilo só poderia ser um pagamento. Portanto, cheguei à óbvia conclusão: eu não era o único a passar por aquela estranha situação. Mas por que tudo isso? Tudo parecia irreal. Há momentos na vida de uma pessoa em que não existem argumentos ou explicações que possam satisfazer as necessidades da mesma, principalmente quando esses momentos se dão em circunstâncias como as minhas. Aquilo realmente era irreal? Será que a missão daquele barqueiro era exatamente a de me buscar no rochedo? Como ele sabia que eu estava naquele lugar e naquele momento?
O mínimo que eu posso dizer é que aquilo tudo não tinha sentido algum.
Passado o momento de torpor, é natural da consciência humana raciocinar os fatos que lhe haviam ocorrido, mesmo sabendo da inutilidade de tais raciocínios, porém é necessário, e diria até obrigatório, levar a uma conclusão estes fatos. Geralmente são eles que resolvem a maioria dos problemas, desde que estes problemas tenham uma válvula de escape, o que não era o meu caso. Eu não tinha outra saída senão proceder de forma como tudo ocorria.
O silêncio ao nosso redor era mortal, podendo-se apenas escutar o ruído que o barco fazia ao ranger suas negras madeiras. Também haviam alguns estranhos barulhos no fundo da embarcação, como se ela estivesse passando por cima de pequenas pedras arredondadas.
Depois de passados vários minutos, resolvi, com muita coragem e decisão, perguntar algo ao barqueiro, que apenas me conduzia em silêncio, não sei para onde e menos ainda porquê:
- "Por gentileza senhor, aonde estamos?"
Não obtive resposta. Tentei novamente:
- "Senhor, seria de muita bondade de vossa parte dizer-me para onde está nos levando?"
Com toda educação e gentileza (apesar das circunstâncias) havia lhe feito duas simples perguntas das quais não obtive nenhuma resposta.
O barqueiro continuava a remar, com toda a sua tranquilidade e lentidão. Percebi que qualquer indagação de minha parte seria inútil. Mantive-me daí em diante em completo silêncio, apenas observando aquele estranho vulto que me conduzia para o infinito, talvez. O medo e o mal pressentimento já estavam dominando-me por completo, mas não havia outra alternativa a não ser esperar e ver o término dos acontecimentos. Torcia para ter um término tudo aquilo. Já havia me acostumado com aquele odor sufocante, pois já não tinha mais aquelas vertigens nauseantes. Estávamos navegando a uns quarenta minutos aproximadamente e a impaciência também já tinha me dominado. Olhava desesperadamente de um lado para o outro - em vão - nada podia ser visto a não ser aquele nevoeiro com seu tom cinzento escuro e seu leve odor de enxofre. A umidade da neblina junto àquele vento brando e cortante causava-me um frio insuportável o qual eu era obrigado a suportar.
O remador, pelo que pude observar, não se incomodava nem um pouco com essas intempéries, pois nada alterava seu jeito de conduzir aquela tétrica embarcação. Porém ele estava envolvido com o negromanto que lhe cobria toda a cabeça e se estendia grotescamente até seus pés. Nada lhe podia tirar a concentração. Imagino que se um elefante tombasse ao nosso lado ele nem levantaria a cabeça para observar. Estava completamente embriagado de concentração.
Meu único passatempo era estudar as características daquele taciturno barqueiro, embora não pudesse observá-lo de perto, pois não tinha ânimo e nem vontade de me mover. Pelo que parecia ele era um homem idoso e já muito enfraquecido pelo tempo, embora não se ouvia dele um único suspiro de cansaço, muito menos um gemido e não parava para descansar um instante sequer. Estava separado dele por uma distância aproximada de três metros, pois aquele barco era relativamente comprido apesar de muito estreito. Imagine o leitor que a esta distância eu poderia observá-lo completamente, isto se não fosse o fato de haver aquele nevoeiro intenso.
Movido, ainda, pela curiosidade, comecei a observar em torno do barco na parte baixa, onde se estendia todo aquele oceano de podridão que parecia não ter fim. Inclinei-me o mais que pude para verificar a composição daquela água fétida que exalava seus vapores nauseabundos. Oh! Tremo ao colocar estas palavras. O horror que senti naquele instante é indescritível.
Não pude deixar de colocar estas palavras ao sentimento que me referi pois naquela água morta boiavam centenas de ossos e crânios humanos. A cada instante algo de mais estranho e bizarro aparecia, desde moedas inúteis e intactas até crânios que pareciam estarem vivos e gemerem como um animal ferido sobre um líquido vetusto, que mais parecia sangue coagulado. Tal era o horror daquele ambiente.
Era devido àqueles ossos que frequentemente eu escutava batidas no casco da embarcação. A partir desse momento eu deixei de alimentar esperanças em relação a minha sorte e aquele barqueiro, completamente indiferente, estava longe de ser um consolo para mim. Estávamos navegando para o infinito, com certeza. Naquele lugar e naquele ambiente percebi que estava submetido à pior das torturas.
Deitei-me numa posição cômoda (pelo menos pude fantasiar esta falsa idéia) com a esperança de acordar daquele horrível pesadelo. No fundo, restava esta minha última esperança, destinada somente, sem nenhuma outra função, a amenizar meus sofrimentos, o mínimo de tremor que tirasse de mim seria muito, pois me encontrava em tal estado de espírito que ainda não conseguia entender como não havia enlouquecido (se é realidade que eu estivesse são).
No entanto, consegui o impossível; peguei no sono, isto devido ao grande cansaço mental em que havia penetrado. Só lembro que acordei com uma voz metálica e rouca que parecia ser de uma pessoa em extrema velhice e que parecia mais um lamento desarticulado do que propriamente uma fala. Porém, era incontestavelmente audível. Levantei a cabeça
"Chegaste a teu destino ó pobre alma. Eis que minha missão está novamente cumprida. Estás agora nas mãos impiedosas do poderoso Hades".
Terminado seu monólogo o barqueiro apontou uma distante ilha que mais parecia um pântano selvagem e desabitado. A névoa começava a dispersar-se. Perguntei-lhe que lugar era aquele e para que ele tinha me conduzido até lá. Em primeiro lugar ele respondeu que aquela era a terra imperial do terrível Hades e depois, levantando a cabeça, me respondeu a segunda pergunta em seu característico timbre vocal:
"Trouxe sua pobre alma até aqui, meu jovem, porque este é meu destino. Eu, Caronte, o barqueiro do inferno, estou preso à eterna tarefa de navegar sobre o Estige, o rio de sangue, para levar as almas pecadoras para as garras de Cérbero, o porteiro das trevas, para que ele castigue-o dolorosamente em nome do poderoso Hades, e queimarás no fogo do Tártaro até que teus pecados tenham se dispersado..."
Oh! Me lembro ainda do impacto que tais palavras me causaram. Arrepio-me também ao lembrar daquele barqueiro. Sua face era a de uma caveira de cujos olhos crepitavam chamas. Asquerosos vermes ainda se mantinham pendurados às suas escassas mechas de cabelo e por detrás daquele negromanto esfarrapado nada mais se movimentava do que um sinistro e marmóreo esqueleto já completamente descarnado.
Foi difícil acreditar no que estava vendo e pior ainda acreditar que eu consegui me manter consciente e dono absoluto de minhas funções apesar de ver e escutar coisas que estariam muito além da compreensão de qualquer um. Teria eu, sido guiado através do Estige por um esqueleto chamado Caronte?! Oh! O que seria de minha alma sobre as trevas?! Ao pisar em terra não existia em mim outro sentimento a não ser o medo. O velho Caronte, com seu fúnebre destino, voltava agora ao Estige, deixando para trás eu e meus temores. Era certo que ele estaria indo de encontro a outra alma, que, como a minha, estava condenada ao martírio e a desesperança.
Em passos lentos fui caminhando ao desconhecido, ao meu lado só se viam árvores fantasmagóricas de cujos galhos, contorcidos e úmidos, negros espinhos saltavam-me à vista. Os vapores do pântano tornavam o ambiente o mais tétrico possível de forma que a cada passo que eu avançava uma dor se apossava dos meus pés, pois o chão estava molhado e envolto numa espécie de névoa rasteira, que subia em forma de vapor até a altura de meus joelhos.
Ruídos e lamentos estranhos chegavam-me aos ouvidos num tom de sofrimento e angústia que me causava arrepios mortais. Ao olhar para trás me via rodeado por um imenso precipício que avançava em minha direção proporcionalmente à velocidade de meus passos, de modo que eu teria de continuar meus passos para frente sem parar jamais. Ao atravessar um bosque de árvores secas e espinhosas, que pareciam estarem vivas, pude observar ao longe, sob um enorme rochedo, um imenso cão cujo pescoço ostentava um colar de serpentes que dilaceravam completamente as faces dos pecadores. Era Cérbero, o irmão de Quimera, o tão famoso cão que guardava a entrada do inferno, para não fugirem jamais os que ali se encontravam. Seria aquele o destino de minha alma?
Quando o guardião se voltou para mim com seus olhos em chamas, não pude deixar de desfalecer. Acordei finalmente daquela letargia horrenda em minha ardente cama.
Demorei a entender e a voltar a mim, mas por fim compreendi que o que tive nada mais foi do que "um sonho dentro de outro sonho". (Nota do autor: esta frase é de autoria de Edgar Allan Poe).
Escrito por: E.R.Corrêa